28.9.15

O contrato dos símbolos

Sempre gostei de dar presentes. Não por uma data ou por uma ocasião, mas por precisar dizer algo a alguém. Acho que é por essa razão que nunca neguei que minha parte favorita desse gesto é poder, junto, colocar algumas palavras que expliquem o porquê de a pessoa estar sendo presenteada. Daí discos e livros serem as escolhas mais recorrentes, já que o habitual é que eles recebam uma dedicatória – assim reza a tradição. Coisa de quem ainda se atém a um certo romantismo, dirão alguns. Mas a verdade é que existe bem mais aí.

Dar um livro ou um disco é compartilhar uma paixão. É convidar para um dividir de essência, é permitir a entrada em um espaço íntimo, é transformar um mundo particular em universo de dois. No meu caso, é abrir a porta para saber um pouco mais do que sou – um baixar de guarda imprudente, mas extremamente válido. Porque sei que, a partir do momento que deixar de ser apenas meu, toda uma história se construirá, e dissociar o presenteado do que compõe o presente será tarefa inútil. Seremos cúmplices, parceiros, simbióticos. Mesmo que desistamos. Afinal, todos construímos memórias juntos, mas poucos se preparam para as ressignificar a partir do momento em que as coisas acabam ou para as resgatar quando for necessário revisitar.  

(Talvez nisso resida a razão para as minhas dedicatórias sempre trazerem a estação do ano: a gente sabe que elas vão se repetir, custe o que custar.)

Por isso, as palavras me importam tanto. Elas firmam um pacto, um trato. Não é só o objeto; com elas, você leva razões, explicações, sentidos. Escrito em tinta que não se apaga, em sentimento que não poderá ser negado, em desejo que ficará para sempre registrado. Gosto da ideia de que, um dia, a pessoa possa reler e pensar “será que ainda vale?” – na bobeira de quem crê que amores são assim, vãos, perdidos na efeméride do tempo e da poeira nas páginas.

No fundo, acho que ainda acredito é na força do que vem dos pequenos gestos e permanece para além dos percalços. No convite para um café no fim da tarde, no ouvir música abraçado no sofá, na poesia torta escrita em guardanapo de restaurante 24 horas. E nos presentes que são extensão daquilo que somos: o livro favorito, o disco marcante, o coração inteiro.

Ou, simplesmente, em mim e em você.

12.4.15

Memória*

O sol se punha havia pouco quando ela o olhou com ternura e pensou sobre a sorte que tinha de estar ali. Foram anos esperando por aquele momento, e agora já nem lembrava mais como era não ter sua companhia. Sua respiração tranquila, seu semblante dócil, seu abraço acalentador, tudo nele era motivo para ela crer que havia, enfim, encontrado o amor. Ele, por sua vez, parecia absorto naquela sensação. Vez por outra tocava os cabelos dela, em gesto tímido de carinho. Seu coração, porém, mantinha-se disparado, em ansiedade quase juvenil. Beijava-a com singular leveza, como se cada tocar dos lábios representasse um universo pedindo para ser sentido. Eram movimentos sutis, mas tão plenos de desejo que pareciam durar uma eternidade. Os suspiros eram em uníssono, e quando a cabeça dela pousou rapidamente sobre seu ombro direito, ele também pensou o quanto era especial a ter em sua vida. O silêncio era cúmplice de que os dois sintetizavam a essência do que havia de mais bonito na humanidade. Foi quando se entreolharam, e o brilho nos olhos foi o mesmo da primeira vez, quando ela, sentada numa cadeira, o acompanhou cruzar todo o salão e a convidar para uma dança. Sorriram.

- Vô! Vó! Vocês não vêm jantar com a gente?

Levantaram-se do banco, de mãos dadas, com o horizonte de estrelas os contemplando. Havia felicidade. Havia sentido. Eram verdade. 

Dançaram - sem música - a valsa mais bonita de todos os tempos. O jantar esperaria mais alguns minutos. Os pequenos voltariam a chamar. Mas agora eram eles, de novo, no meio daquele baile de tantos e tantos anos atrás. E aquela canção (a mesma canção) nunca iria parar de tocar.

*para meus saudosos avós Fernando e Lindalva, que hoje dançam juntos, certamente, lá no Céu.


22.1.15

Inverno em Veneza

A primeira vez que ele sentou ao piano foi para tentar compor uma canção de amor. Porém, nada saiu. Faltavam a ele o domínio dos acordes e o conhecimento do tema. Assim, decidiu lançar-se ao aprendizado. Estudou as escalas minuciosamente, entendendo tom por tom. Aprendeu o que era grave, o que era agudo, o que era maior e o que era menor. Ao mesmo tempo, tentou começar a amar. Investiu em relações que pareciam certas, crescendo ao ouvir um sim ou um não. Viveu o que era dor, o que era alegria, o que era sério e o que era fútil. Colheu as duas experiências e foi escrever sua primeira canção, mas se descobriu clichê, falando obviedades em notas simplistas. Decidiu começar de novo. Desta vez, foi rigoroso: usou pausas e sons prolongados, construindo sutilezas necessárias. Também buscou uma relação estável, feita de sorrisos constantes e afeto mútuo. Com os dois, as frases foram saindo com facilidade, as batidas do coração ditando o ritmo da música. Se, por breves segundos, a inspiração lhe faltava, olhava para ela ao seu lado e logo a ordem se reestabelecia. Quando viu, mais do que uma canção, tinha uma sinfonia completa, vibrante, pulsando vida. E a casa se encheu de amores e sons, levando embora o vazio do silêncio que reinava até pouco tempo. Foi assim que ele descobriu que a música sempre esteve ali, esperando para se desvelar. O que faltava era ela, somente ela. 

- Silêncio, vai começar!

- Eu nunca vou deixar de te amar. 

3.1.15

Pasárgada

Existe uma tristeza aqui dentro que, por vezes, apresenta-se com uma força visceral. É quando a garganta aperta e os olhos marejam sem que nada tenha acontecido, me lembrando que o vazio existe e que a ausência continua a incomodar. Aí a voz embarga, o corpo fraqueja e o coração parece parar. O pior, porém, não é saber que ela está em mim, mas não poder controlar a sua aparição. Porque, na maior parte do tempo, estar feliz é possível. Há muito com que possa me ocupar, então ela fica ali, quietinha, guardada num canto qualquer. Mas basta um silêncio, um dia livre ou uma chuva fina para me derrubar. E isso acontece, simplesmente. Mesmo que eu tente fugir. Mesmo que eu insista em não pensar. E machuca, sangra, atormenta. Apesar de tudo, também sei que ela vai embora quando o dia acabar, então basta apenas suportar por algumas horas. Chorar um pouco, gritar um tanto, lamentar por demais. Dormir. Dormir torcendo para que, ao menos em meus sonhos, você esteja aqui para isso parar de doer. Porque lá você sempre volta. Porque lá a tristeza não existe. Porque lá não há horas vazias nem página em branco. Somos só nos dois. Novamente. Até o fim.