3.9.06

Retroprocessador

Ele parou por um instante e deu mais um gole no chá. Era calor, a cidade era o Rio de Janeiro, mas mesmo assim o dia parecia pedir uma bebida quente e sofisticada. Do outro lado, estava ela. Quieta, reativa. Provavelmente tomando uma coca-cola ou qualquer outro líquido de cor escura e bolhas (“fazem cócegas no céu da boca, você sabia?”) e pensando em como ele era imbecil de, depois de tudo, ainda tentar falar mais do que duas palavras com ela.

Ainda assim insistia.

O chá tinha o mesmo gosto de sempre. Afinal, por que raios havia sabores? No fundo, todos pareciam água suja e tinham gosto de uma erva qualquer. Sofisticado porra nenhuma, é bebida para aquelas velhas que passam o dia filosofando sobre como era bom quando elas eram jovens, como se elas lembrassem como era bom quando elas eram jovens. Lembram porra nenhuma. Coca-cola porra nenhuma. Enfim.

Ainda assim insistia.

Ela já tinha ido embora, mas ele continuava a beber o chá. Frio, escuro, enfiado na cadeira como se tivesse sido plantado e germinado ali. Ela devia estar pensando em como ele era imbecil de, depois de tudo, ainda tentar falar mais do que duas palavras com ela. Mas o dedos dele estavam trêmulos e ele só sabia perguntar se tudo estava bem . E ela virando as costas como se nada ouvisse (“eu só ouço o que quero, você sabia?”) e caminhando lentamente para o fim do corredor.

Ainda assim insistia.

Essa merda de cadeira dói a bunda. E as costas também. Porra, como eu odeio essa cadeira de merda. E esse chá de merda, que já tá frio. Vai embora porra nenhuma, você tem que me ouvir. Você não é uma daquelas velhas surdas que passam o dia vagabundeando pelas calçadas da rua, fechando o caminho de quem tá com pressa. E eu tenho pressa, e elas tão sempre no meu caminho. Como você. Porra nenhuma. E você, tá bem?

Ainda assim insistia.

Bem porra nenhuma.

20.1.06

Efemeridade

Queria saber medir o tempo com algo que não fossem horas minutos segundos. Talvez medir com a intensidade dos olhares perdidos ou das lágrimas em vão. Ou, quem sabe medir, com as esperanças depositadas em amores infrutíferos ou com as palavras ditas por calor da ocasião. De repente medir com as músicas dedicadas em silêncio ou com as cenas revistas em comunhão. Ou simplesmente com os passos que nos afastam-aproximam de qualquer objetivo.

Mas não. Só aprendi a lógica das coisas simples, do mundo simples, da vida banal. E, como todos, apenas me sinto capaz de perceber aquilo que passa, nunca o que repassa ou o que permanece aqui. É a percepção mundana de quem cresce acompanhando em folhas de calendário a sua evolução, e não percebe que o sentido não está ali. É um conhecimento que não vem das marcas e dos controles, uma noção que se desapega quando percebemos o quanto deixamos de viver por querermos viver mais. São as amarras de algo que já nasce para ser efêmero, e que nos deixa acostumados a ver só ir e sorrir, sem entender que, quando não há relógio que marque o tempo de dentro, não há vida que explique o tempo lá fora.